Texto extraído do
livro: “E se Obama fosse africano.”
A nossa tentação é sempre maniqueísta. A visão
simples que separa os “bons” dos “maus” é sempre mais imediata. Quanto menos
entendemos, mais julgamos.
A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas
estão sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por
muito que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que
pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as
armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se
converteu nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus pelo
nosso hardware mental.
Escolhi falar dessas ratoeiras interiores que
nos convertem em nômades deambulando entre ecos e sombras. Uma das primeiras
armadilhas interiores é aquilo a que chamamos de “realidade”. Falo, é claro, da
ideia de realidade que atua como a grande fiscalizadora do nosso pensamento. O
maior desafio é sermos capazes de não ficar aprisionados nesse recinto que uns
chamam de “razão”, outros de “bom-senso”. A realidade é uma construção social e
é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira. Nós não temos sempre que
a levar tão a sério.
Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe
perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão
tão desumana ele respondeu: “Eu desvalorizei as paredes”. Essa lição se
converteu num lema de minha conduta.
Ho Chin Minh ensinou a si próprio a ler para
além dos muros da prisão. Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato.
É ensinar a escolher entre sentidos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar
no sentido original da palavra “pensar” que significa “curar” ou “tratar” um
ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de
doenças de que padece. Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade de
transcendência, recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso
implica a aplicação de um medicamento chamado inquietação crítica.
A mais perigosa armadilha é aquela que possui a
aparência de uma ferramenta de emancipação. Uma das ciladas é a ideia de que
nós, seres humanos, possuímos uma identidade essencial: somos o que somos
porque estamos geneticamente programados . Ser-se mulher, homem, branco negro,
velho ou criança, ser-se doente ou infeliz, tudo isso surge como condição
inscrita no DNA. Essas categorias parecem provir apenas da natureza. A nossa
existência resultaria assim, de um código genético, assim, apenas de uma
leitura de um código de bases e nucleotídeos.
Essa
biologização da identidade é uma capciosa armadilha. Simone de Beauvoir disse:
a verdadeira natureza humana é não ter natureza humana. Com isso ela combatia a
ideia estereotipada da identidade. Aquilo que somos não é simples cumprir de um
destino programado nos cromossomos, mas a realização de um ser que se constrói
em trocas com outros e com a realidade envolvente.
(...)
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum
diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto
universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens,
lemos o chão, lemos o mundo, lemos a vida. Tudo pode ser página. Depende apenas
da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não
leem livros. Mas o déficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o
mundo, não lemos os outros.
Retomada da leitura inicial
•
Quanto menos entendemos, mais julgamos...
•
Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de
mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu nosso próprio olhar.
•
O maior desafio é sermos capazes de não ficar
aprisionados nesse recinto que uns chamam de “razão”, outros de “bom-senso”.
• Essa
biologização da identidade é uma
capciosa armadilha.
(Transformar em biológico tudo que é social )
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